
O que andas cantando por aí?
Algumas considerações iniciais para nivelarmos o entendimento…
O conceito de Cultura, segundo Roque de Barros (1986), consiste resumidamente em um conjunto de símbolos e significados definidos por um grupo de indivíduos em uma sociedade que orienta os seus comportamentos. A cultura é dinâmica e se modifica de acordo com as mudanças que surgem em tal sociedade. Ela está muito menos relacionada ao aspecto biológico do indivíduo e muito mais ao seu histórico de vida, o seu meio social e a sua interação social.
Portanto, compreender a cultura como algo construído e não herdado geneticamente é uma premissa verdadeira e totalmente possível de ser afirmada.
Quando se fala em cultura do estupro, pode ser entendido um conjunto de atitudes, símbolos e pensamentos que exaltam, legitimam e estimulam comportamentos violentos e abusivos sobre as mulheres.
Tendo o Brasil a quinta posição no ranking mundial dos países mais violentos para as mulheres (OMS, 2015) é preciso falar sobre toda e qualquer manifestação que incite o abuso e a violência sexual contra as mulheres, por isso, ficar atentos as letras de músicas popularmente cantadas no cotidiano da nossa sociedade é um ato de proteção, empoderamento e alerta para as mulheres brasileiras.
A sutileza dos tempos antigos
A música continua sendo a forma mais sutil e eficaz de manipular o comportamento em massa na sociedade. Não é à toa que a indústria cultural utiliza tanto esse meio de comunicar e manipular as pessoas.
Desde os tempos antigos, a mulher vem sendo retratada em músicas como objetos, ora de desejo, ora de repúdio. E, em sua maioria, músicas estas interpretadas por homens. Uma das mais famosas é “Ai que saudade da Amélia”, que para muitas mulheres da minha geração (nascidas na década de 80) foi apresentada e ensinada por suas avós.
A letra diz o seguinte:
Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulherÀs vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, o que se há de fazer!
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
Nela é possível observar como a mulher que não nutre nenhuma vaidade e nem ambição é valorizada. Junto com a exaltação a mulher que se conforma em passar fome (e até é grata) ao lado do homem.
Essa música fez grande sucesso sendo interpretada por Mário Lago, um famoso ator da década de outro da televisão e do rádio.
Eu mesma aprendi de menina a cantar essa música, mas já com um olhar mais crítico, onde minha mãe e avó me ensinavam que deveria crescer sem nunca me tornar uma “Amélia”.
A cultura da época do lançamento dessa música, 1942, era bem diferente da que cresci nas décadas de 80 e 90 – como citado inicialmente a cultura é dinâmica – e isso me ajudou a ter uma perspectiva para mim bem diferente das mulheres da época da minha avó na década de 20 e 30.
A agressividade escancarada nos dias de hoje
Em contraponto, percebemos hoje a banalização da cultura do estupro na indústria musical em letras de funk, como na música “Baile de favela”, que tem a seguinte letra:
Ran ran ran ran ran
Pega a visão pega a visão
Ran ran ran ran ran ran
Pega a visão pega a visão
Ran ran ran ran ran ran ran ran
(Quele Quele pique ó)
Ran ran ran ran ran ran ran ran ran ran ran ran ran
É o celminho que tá mandando anda chama
É o Diguinho que tá mandando anda chama
Pode vim sem dinheiro
Mais traz uma piranha
Pode vim sem dinheiro
Mais traz uma piranha
Brota e convoca as puta
Brota e convoca as puta
Mais tarde tem fervo
Hoje vai rolar suruba
Só surubinha de leve
Surubinha de leve com essas filha da puta
Taca bebida depois taca pika
E abandona na rua
Essa música não apenas exalta a cultura do estupro como também caracteriza uma nova forma de violência, a violência ostentação, novo termo jornalístico usado para descrever o contexto social no qual ocorrem acontecimentos violentos em ambientes que consomem esse tipo de música. (BRILHANTE AVM et al, 2019)
No Brasil, nos últimos três anos, diversos foram os relatos de casos de estupros coletivos, onde os agressores gravaram e publicaram em redes sociais seus atos criminosos, a chamada violência ostentação, sendo preocupante a cultura dessas músicas que estimulam comportamentos violentos contra as mulheres.
As mulheres cantam em sua defesa
Um novo movimento na indústria musical vem crescendo nos últimos anos com as mulheres cantando suas defesas, impondo-se enquanto pessoas e não coisas ou objetos de consumo, reverberando em voz e canto que merecem respeito e que não irão mais se calar mediante a violência desenfreada que estão sofrendo.
Uma dessas vozes é a da dupla Carol e Vitória, que compuseram uma música em resposta a citada anteriormente, eis a letra:
Só uma surubinha de leve
Surubinha de leve,com essas filhas da
Taca a bebida,depois taca a
E abandona na ruaSó uma surubinha de leve
Surubinha de leve,com essas filhas da
Taca a bebida,depois taca a
E abandona na ruaAgora vou te responder
Então vê se senta e escuta
Olha o que ela tem a dizer
Essa que tu chama de filha daPega a visão
An,an,an,an,an
Pega a visão
An,an,an,an,anPode vir sem dinheiro, mas traz papel e caneta
Pra ver se anotando,entra algo nessa tua cabeça
Abusar a mulher é crime!estupro é violência!
Tira as mãos de cima dela e coloca na consciênciaSó um recadinho de leve
Recadinho de leve
Sociedade machista!
Não pensa que me ofende ao me chamar de feminista!Só um recadinho de leve
Recadinho de leve
Pra quem fala o que quer
Não calo a minha voz pra defender uma mulher!
E também percebemos que esse movimento não se restringe as jovens cantoras, como podemos percebemos na música “Seu Grito” de Aurinha do Coco de 68 anos, nordestina, que canta em prol da liberdade, do respeito e da dignidade das mulheres na letra abaixo:
Seu grito silenciou lá no alto em olinda
era uma mulher tão linda que natureza criou
ela foi morta no meio da madrugada
com um tiro de espingarda pela mão do seu amor
fico orando, à deus peço clemência
com toda essa violência o mundo vai se acabar
moro em olinda, canto coco com amor
luto contra a violência porque mulher também sou
eu sou guerreira mulher, mulher guerreira eu sou
eu canto coco em olinda e canto com muito amor (refrão)
As mulheres estão cantando não só as suas dores de amor, as suas perdas, mas a sua luta em se constituir mulher em uma sociedade machista, sexista, racista, misógina e exaltante de uma cultura que estupra, agride, humilha e viola a dignidade humana das mulheres até o ponto em que lhe ceifa o direito à vida. Como podemos ver na letra da música “100% feminista” da MC Carol e Karol Conka:
Presenciei tudo isso dentro da minha família
Mulher com olho roxo, espancada todo dia
Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia
Que mulher apanha se não fizer comida
Mulher oprimida, sem voz, obediente
Quando eu crescer, eu vou ser diferente
Eu cresci
Prazer, Carol bandida
Represento as mulheres, 100% feminista
Eu cresci
Prazer, Carol bandida
Represento as mulheres, 100% feminista
Represento Aqualtune, represento Carolina
Represento Dandara e Xica da Silva
Sou mulher, sou negra, meu cabelo é duro
Forte, autoritária e às vezes frágil, eu assumo
Minha fragilidade não diminui minha força
Eu que mando nessa porra, eu não vou lavar a louça
Sou mulher independente não aceito opressão
Abaixa sua voz, abaixa sua mão
Mais respeito
Sou mulher destemida, minha marra vem do gueto
Se tavam querendo peso, então toma esse dueto
Desde pequenas aprendemos que silêncio não soluciona
Que a revolta vem à tona, pois a justiça não funciona
Me ensinaram que éramos insuficientes
Discordei, pra ser ouvida, o grito tem que ser potente
Eu cresci
Prazer, Karol bandida
Represento as mulheres, 100% feminista
Eu cresci
Prazer, Karol bandida
Represento as mulheres, 100% feminista
Represento Nina, Elza, Dona Celestina
Represento Zeferina, Frida, Dona Brasilina
Tentam nos confundir, distorcem tudo o que eu sei
Século XXI e ainda querem nos limitar com novas leis
A falta de informação enfraquece a mente
Tô no mar crescente porque eu faço diferente
Eu cresci
Prazer, Carol bandida
Represento as mulheres, 100% feminista
Eu cresci
Prazer, Karol bandida
Represento as mulheres, 100% feminista
Conclusão
Notamos que a cultura do estupro em muitas músicas populares banalizam, legitimam e valorizam a violência contra as mulheres, estigmatizam àquelas que se negam a servir de objeto sexual aos homens manipulando um comportamento de apropriação dos homens sobre as mulheres.
E, geralmente, quanto maior a cultura do estupro em uma sociedade maiores são os índices de violência contra a mulher. O que vai ao encontro das taxas de feminicídios, estupros, agressões e violência contra as mulheres no Brasil.
Ao mesmo tempo que percebemos uma indústria que vende essa violência, também notamos um movimento das mulheres que estão se impondo através de sua arte, de sua voz, de sua música contra essa cultura.
Não aceitar, compartilhar, disseminar e exaltar essas músicas cabe a cada uma de nós mulheres, mudar a nossa postura em relação a essa indústria.
Portanto, prestem atenção no que andam cantando por aí.
Fontes:
- 2 minutos para entender a cultura do estupro, Site Superinteressante. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7a2uY64IwXY.
- 100% feminista, MC Carol e Karol Conka, Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W05v0B59K5s
- Brilhante AVM, Giaxa RRB, Branco JGO, Vieira LJES. Cultura do estupro e violência ostentação: uma análise a partir da artefactualidade do funk . Interface (Botucatu). 2019; 23:e170621
- Empoderamento feminino e cultura do estupro na música, Canal Futura. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=EBlCYx18LfM
- LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997 [1986]. 11ª edição
- Seu Grito, Aurinha do Coco, Youtube. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=wxP7QTfYoZw
- Surubinha de leve (Resposta), Carol e Vitoria, Youtube. Disponível em https://www.letras.mus.br/vitoria-e-carolina-marcilio/surubinha-de-leve-resposta/
- Taxa de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo. Site EXAME. Disponível em https://exame.abril.com.br/brasil/taxa-de-feminicidios-no-brasil-e-a-quinta-maior-do-mundo/. Acesso em 02 de junho de 2019.
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Um comentário
Luiz Shigunov
Texto muito bom. Não podemos aceitar qualquer tipo de violência contra a mulher. E precisamos falar muito sobre isso para ver se as coisas começam a mudar. Parabéns!